quinta-feira, 29 de maio de 2008

De cabeça baixa

Flávio Izhaki leu trechos de seu romance recém-lançado pela editora Guarda-Chuva: De cabeça baixa. A história de um escritor em auto-exílio que encontra seu livro num sebo, cinco anos após a publicação deste, com as margens do texto todas anotadas com comentários cáusticos. Abaixo, um dos pequenos trechos lidos na noite e a foto do autor em cena, que, apesar de afirmar que estava nervoso, foi muito bem no palco e deixou a platéia com vontade de conhecer o desenrolar da história.


"Houve vezes que poderia ter feito um pouco mais, sido um pouco mais para Luana. Levá-la até a porta do elevador e congelar o sorriso na janelinha até a caixa descer. Não conseguia. Ela sempre via a sensação de perfeição desabar com força maior do que a gravidade. O último olhar nunca levava um sorriso de recordação, e nem o primeiro, quando ela abria os olhos se espreguiçando com o corpo inteiro e o sentia ao lado na cama."

As mariposas

Paulo Thiago de Mello esteve entre os convidados da última edição do MaPa. Abaixo trechos dos textos que declamou, inspirados em memórias de relacionamentos afetivos do passado!



Ela tem curvas. Todas elas têm. Mas sua textura muda e traz odores sutis, suores suaves, que a constragem e me embalam. Do centro de suas pernas saem mariposas. Sua floresta esconde um sol de úmidos raios. Muitas coisas acontecem ali. Misteriosas, emaranhadas, espessas, escorregadias. Exploro bem de perto seu território, com olhos de míope, farejando, tateando com todos os sentidos. Durante séculos, atravesso seus vales, mergulho em seu lago e me enrolo em sua pele transparente. Sorvo seus líquidos, mordo sua carne, bebo seu sangue e deixo sinais nas curvas de suas coxas. Cravo minha marca com caninos afiados. Depois, me cubro com seus cabelos e me deixo ficar, eterno vigilante de minha conquista. Está sempre de passagem, pronta para fugir. Mas às vezes se distrai e me fecunda de alegrias espantosas, até que o amanhecer a devolva aos abismos.


Era frágil como um passarinho. Olhar ciscando, impreciso, procurando saídas. Respirava sua sina de ninfa e escondia o medo na languidez dos gestos, nas palavras de obscenidade óbvia. Exalava um perfume barato. Os cabelos, duros de tanta tinta, eram cores improváveis, tom sobre tom de muitas camadas, como as histórias de seu dia-a-dia, que se sucediam rapidamente. Mas eu a via sempre menina. Perdido num turbilhão de dúvidas, não sabia se a devorava ou a salvava de uma vez por todas. Era ela quem decidia, afinal, quando me despia a alma e, assustada como um passarinho, me engolia.